Cooperativismo financeiro e abordagem ESG: compromissos e oportunidades
“Sejamos bons anfitriões da terra que herdamos. Todos nós temos que compartilhar os frágeis ecossistemas e recursos preciosos da terra, e cada um de nós tem um papel a desempenhar na preservação deles. Se vamos continuar vivendo juntos nesta terra, todos devemos ser responsáveis por isso.”
[Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, reputado pioneiro na proposição da agenda sobre desenvolvimento sustentável com base no tripé ESG, incialmente dirigida ao mercado de capitais]
O tema da sustentabilidade, alçado, já em 2020, a uma das dimensões da agenda estratégica do Banco Central do Brasil para o sistema financeiro (Agenda BC#), com a finalidade de estimular o engajamento dos entes supervisionados nesse campo, tem merecido ainda mais destaque pela notoriedade que se vem conferindo aos princípios ESG (Environmental, Social and Governance, ou, na versão em português, Ambiental, Social e Governança – daí, também, o uso da sigla ASG em nossa língua).
A amplitude da pauta e a ausência, por ora, de uma classificação padrão sobre iniciativas catalogáveis nesse âmbito (taxonomia) encorajam o aprofundamento das reflexões e incitam novos debates. Nessa direção, estas breves percepções têm como objetivo agregar aspectos pontuais e pragmáticos à matéria, com foco em deveres e, principalmente, oportunidades das instituições financeiras cooperativas.
Tendo sua relevância já reconhecida no mercado financeiro, as sociedades cooperativas, dada a cartilha doutrinária que direciona a atuação do movimento ao redor do mundo há cerca de 200 anos e como instituições prevalentemente de lugar, reúnem motivos além dos regulatórios para destacarem-se entre os agentes reconhecidos por suas boas práticas ambientais, sociais e de governança.
Dito de outra forma, as cooperativas, igualmente no presente caso, têm encargos diferenciados quando comparadas a outros operadores da mesma indústria, inclusive quanto à conscientização – nos termos do quinto princípio cooperativista – sobre a importância do desenvolvimento sustentável em sua esfera de influência.
A raiz desse vanguardismo e comprometimento reside nos valores universais do movimento (precedentes e originadores dos princípios cooperativistas), tendo como postulados mais difundidos:
1º) Solidariedade, cuja essência conduz à colaboração de todos com todos na sociedade cooperativa, fazendo a força do conjunto e assegurando o bem de cada um dos membros. É uma espécie de reciprocidade obrigacional, justificada pelo interesse comum. Ser solidário é praticar a ajuda mútua, é cooperar por definição, é tornar o empreendimento sólido (liga-se ao princípio cooperativista da participação econômica).
2º) Liberdade, que reside no direito de escolha pela entidade cooperativa, tanto na hora do ingresso como no momento da saída, podendo o participante, enquanto cooperado, mover-se e manifestar-se de acordo com a sua vontade e consciência, respeitados os limites estabelecidos coletivamente (dialoga com o princípio da adesão livre e voluntária).
3º) Democracia, que está diretamente relacionada ao pleno direito de o associado participar da vida da cooperativa em toda a sua dimensão, especialmente pela palavra e pelo voto, implicando, em contrapartida, respeito às decisões majoritárias. Indica também acesso universal, sem discriminação de qualquer espécie. É pela democracia que se exerce a cidadania cooperativa (remete para o princípio da gestão democrática).
4º) Equidade, que se manifesta, fundamentalmente, pela garantia da igualdade de direitos, pelo julgamento justo e pela imparcialidade, tanto em aspectos econômicos como sociais (da mesma forma, tem vínculo prioritário com o princípio da gestão democrática).
5º) Igualdade, que impede a segregação em razão de condição socioeconômica, raça, gênero ou sexo, ideologia política, opção religiosa, idade ou de qualquer outra preferência ou característica pessoais. A todos hão de ser outorgados os mesmos direitos e atribuídas as mesmas obrigações (materializa-se por meio dos princípios da adesão livre e voluntária, da gestão democrática e da participação econômica).
6º) Responsabilidade, que tem a ver com a assunção e o cumprimento de afazeres. O cooperado é responsável pela viabilidade do empreendimento, incumbindo-lhe operar com a cooperativa e participar das atividades sociais. Cada qual responde pelos seus atos, devendo agir com retidão moral e respeito às regras de convívio adotadas coletivamente (tem como ponte os princípios da gestão democrática, participação econômica e autonomia e independência).
7º) Honestidade, que se liga à verdade por excelência. É uma das marcas de pessoas dignas, de elevado caráter. Tem a ver com retidão, honradez e probidade – adjetivo, por sinal, presente na denominação da 1ª cooperativa dos tempos modernos: Cooperativa dos probos pioneiros de Rocha ale (vincula-se ao princípio da autonomia e independência).
8º) Transparência, que diz respeito à clareza, àquilo que efetivamente é, sem ambiguidade, sem segredo. No meio cooperativo, todos têm de ter conhecimento preciso sobre a vida da entidade: suas regras, sua gestão, seus números (faz parceria com o princípio da educação, formação e informação).
9º) Consciência socioambiental, que institucionaliza o pacto do empreendedorismo cooperativo com o bem-estar das pessoas e a proteção do meio ambiente na sua área de atuação, preocupação que envolve desenvolvimento econômico e social e respeito ao equilíbrio e às limitações dos recursos naturais. A palavra-chave, aqui, é sustentabilidade (tem no princípio do interesse pela comunidade o seu vetor principal).
Esses fundamentos ou alicerces, como se pode facilmente constatar, permeiam de algum modo todos os alvos da abordagem ESG, sejam associados ao meio-ambiente, a questões sociais ou à governança. Não por outra razão, dada a conexão de propósitos, as cooperativas são reconhecidas como agentes fundamentais para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ODS/ONU), que tem como âncora justamente a “cooperação”. Daí, também, a proclamação, pela ONU, de 2012 como ano internacional do cooperativismo, sob o lema “cooperativas constroem um mundo melhor”.
Embora, por sua natureza e vocação, naturalmente já conciliem aspectos econômicos e socioambientais e cultuem a liderança consciente, há terreno abundante para as cooperativas aprimorarem, expandirem e consolidarem o seu modelo de negócios nessa direção.
Ações ambientais
Diante desse contexto, portanto, e tendo, ainda, como esteio o sétimo princípio (ou vetor) global do movimento associativista – interesse pela comunidade (mais bem traduzido ou melhor compreendido como compromisso com a comunidade) –, a expectativa é que as entidades cooperativas impulsionem as finanças sustentáveis, com ênfase a projetos da chamada economia verde ou de baixo carbono, zelando pelo equilíbrio ambiental e respeitando as fragilidades e limitações do ecossistema local e regional. Complementarmente, podem estender a sua contribuição com recursos financeiros e esforços pessoais de suas lideranças e de seus executivos em medidas de proteção e revitalização do meio-ambiente.
Para além disso, sabendo das alterações climáticas em curso, em suas atividades devem estar atentas e preparadas quanto aos riscos que decorrem dos eventos extremos, entre os quais as estiagens, os excessos localizados/sazonais de chuvas, os desvios de temperatura e outras intempéries de maior severidade que tendem a repercutir na matriz econômica apoiada pelo setor cooperativo (vale lembrar que a gestão dos riscos sociais, ambientais e climáticos passa a ter assento regulamentar – Resolução CMN nº 4.943/2021 e Instrução Normativa BCB nº 153/2021 –, e, como tal, revestida de teor mandatório).
Na perspectiva ambiental, ainda, espera-se que as cooperativas, na condição de negócios locais e empreendimentos que invariavelmente congregam as principais lideranças comunitárias, componham o pelotão de frente na identificação e no incentivo de/a novos métodos e alternativas de desenvolvimento. Aqui a busca deve ser por inovações que respeitem a vocação do território e seus recursos naturais e que sejam resilientes às transformações que vimos experimentando.
Enfim, almeja-se das cooperativas amplo apoio aos cooperados e às suas comunidades na transição para um processo produtivo cada vez mais convergente com as novas diretrizes.
Práticas sociais
Já no campo social, antes de tudo há que se ressaltar que o cooperativismo, como anuncia o primeiro de seus princípios gerais, é um movimento de “portas abertas”, acolhedor de todas as raças, de todas as cores, de todos os credos e das diferentes ideologias, e que recepciona os seus membros sem discriminá-los ou distingui-los em razão da condição econômica, social ou cultural.
Por conseguinte, a quem quer e, sobretudo, precisar, é permitido usufruir dos benefícios da cooperação. E esse acesso pleno deve ser ostensivamente disseminado por toda a sociedade, a expensas e para o bem do segmento.
Em razão (outra vez) do vínculo territorial e de sua orientação filosófica, cumpre às empresas cooperativas avocar uma atuação qualificada para mitigar ao máximo as diferenças socioeconômicas na sua base geográfica.
Neste caso, pensando na geração de emprego e renda, uma contribuição mais efetiva pode dar-se pelo incremento dos financiamentos produtivos, adequados (suficientes, tempestivos e a preços justos, por exemplo), e por meio do crédito ao consumo responsável, o que condiz com a função recicladora da poupança local (retenção e reinvestimento nas próprias praças dos recursos ali monetizados). Aliás, a ação creditícia, nesses termos, é, e sempre será, o principal instrumento das cooperativas financeiras para uma economia sólida e inclusiva.
Adicionalmente, sob a ótica do compartilhamento do resultado e do empreendedorismo humanizado, conceitos igualmente caros e inatos ao cooperativismo, algumas frentes importantes podem ser impulsionadas, como o fomento a projetos sociocomunitários voltados às classes menos favorecidas; o estímulo ao consumo consciente (ou suficiente), notadamente por meio da educação financeira; o apoio à formação de cidadãos e de empreendedores e a alocação de fundos para resgate emergencial de pessoas particularmente vulneráveis. Quanto a tais medidas, a futura possibilidade de utilização dos recursos do Fates – Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social – a bem de toda a comunidade, como consta do PLP 27/2020, é uma notícia muito alentadora.
Com tais características e apelos, somados ao ambiente ainda precário em termos de inclusão financeira e formato (produto, preço, atendimento e nível de atenção com o território) da proposta bancária no Brasil, as cooperativas têm de escalar substancialmente o seu quadro associativo, mesmo porque o número de cooperados, por aqui, está bem aquém da sua representatividade no cooperativismo já consolidado, nomeadamente na Europa e América do Norte.
Padrões de governança
Nessa dimensão as cooperativas podem, também, alargar o exemplo. Além de os órgãos superiores de administração e de seus componentes, individualmente, mostrarem-se mais ativos e empenhados em relação aos outros dois pilares (social e ambiental) – sem o que estes ficarão à margem da estratégia organizacional –, devem conduzir-se de tal modo a serem percebidos como referência na devoção aos predicativos deontológicos (ou imperativos ético-morais) que conformam uma gestão virtuosa. Atributos como equidade, integridade, transparência e responsabilidade corporativa e social hão de ser especialmente cultivados na prática.
No que diz respeito à formação dos colegiados, ao lado do aprimoramento como um todo dos processos sucessórios existe grande espaço a ser ocupado por mulheres e jovens, cujo ativismo na camada diretiva é imprescindível para que as cooperativas possam reputar-se verdadeiramente inclusivas e adeptas da diversidade e do equilíbrio de gênero.
Ainda na seara da administração meritória, requer-se uma atenção dedicada das lideranças à preservação ou restauração da identidade cooperativa, de suas credenciais genuínas – de modo que os gestos sejam fiéis às palavras –, o que por si só permitirá posicionar o movimento entre os principais atores do ESG. De outro modo, negligenciando sua origem, seu “porquê”, as cooperativas tendem a afastar-se do seu verdadeiro propósito, perdendo a razão de ser.
Conclusão
Eis, portanto, algumas das incumbências e oportunidades que as instituições financeiras cooperativas, até mesmo como modelos, devem e podem percorrer com maior intensidade para acentuar os impactos positivos hoje já produzidos (embora insuficientemente divulgados) em suas áreas de abrangência, assumindo real protagonismo na edificação de um mundo mais equilibrado e assegurando a sua própria perenidade.
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